Rumo a uma educação teológica pós-colonial. Por Esther Mombo

Lambeth 2022 deixou de adotar resoluções e passou a fazer chamados. Os chamados registraram declarações de crenças fundamentais anglicanas, afirmações de prioridades atuais e convites para um trabalho mais aprofundado por meio do caminhar, ouvir e testemunhar juntas/os. Como se observou, os Chamados foram, de certa forma, mais brandos do que as resoluções. Ao usar a linguagem de chamado, a conferência afirmou que todas/os nós pertencemos ao povo de Deus e que todas/os merecemos ser ouvidas/os, com nosso contexto e história respeitadas e valorizadas. Dessa forma, os chamados visam desafiar as comunidades cristãs e as comunidades religiosas em geral a não servirem de terreno fértil para teologias violentas, que produziram e continuam a produzir ideologias, doutrinas e pessoas violentas, perpetuando assim muitos males em nossa sociedade.
Temos consciência de que a Comunhão Anglicana é um lugar de disputa e que a informação tem poder. As pessoas que produzem informação têm poder. No passado, foram produzidos alguns materiais que ficaram em nossas prateleiras porque as pessoas se colocaram em uma posição de suspeita. Consciente dessa realidade, proponho que, em nosso trabalho, nos empenhemos intencionalmente em trabalhar fora da caixa e transitemos entre os espaços, rompendo os limites quando apropriado, a fim de alcançar as realidades vividas pelas pessoas nos dias de hoje.
Para isso, recorro a estudiosas/os que analisaram questões de pedagogia e currículo. Sarojini Nadar e sua equipe têm uma metodologia transpedagógica e empregam três elementos “trans” para ajudar nesse processo: que ela seja transdisciplinar, transgressiva e transformadora.
Foi atribuída ao CTEAC a responsabilidade de trabalhar em cinco áreas temáticas e produzir materiais educacionais para cada uma delas. Vivemos em uma época em que frases como “não deixar ninguém para trás” e “todos têm que estar na mesa” são usadas com frequência e, para a Comunhão Anglicana, que é diversa e tem uma história colonial vivenciada de forma diferente por colonizadores e colonizadas/os, isso torna esse trabalho uma tarefa assustadora.
Como pessoas cristãs pós-coloniais e educadoras/es teológicas/os do século XXI que se respeitam, devemos ser capazes de articular com confiança evangélica nosso entendimento sobre como todas as elaborações de conhecimento, inclusive do conhecimento teológico, sempre refletem interesses de poder dominantes. . . também deveríamos ter sido as/os primeiras/os a adotar práticas acadêmicas comprometidas com formas de colaboração equitativas e mutuamente benéficas com indivíduos e comunidades subalternas. De que outra forma as hegemonias eurocêntricas arraigadas há muito tempo nos currículos teológicos, na pedagogia, na avaliação e no credenciamento podem ser rompidas, expostas e transformadas?
O contexto diversificado das províncias e dioceses anglicanas, portanto, não precisa de um modelo que possa ser copiado e colado para elas, mas de uma estrutura que lhes dê espaço para a criatividade e a imaginação. Um dos efeitos do colonialismo e do Cristianismo missionário foi não abrir essa possibilidade. As pessoas que queriam ser criativas tiveram que sair e criar suas próprias igrejas na África, por exemplo. Às vezes, outras permaneceram fiéis ao anglicanismo nas coisas superficiais, mas não no que é tangível, em consonância com as realidades vivenciadas pelas pessoas.
Na preparação das estruturas para as cinco áreas temáticas, os grupos de trabalho devem abrir espaço para a imaginação e a criatividade, de forma que cada contexto possa responder perguntas sobre os temas a seu modo. Isso ajudará a lidar com a herança colonial que parece estar entranhada na mente da maioria das pessoas e que é transmitida às gerações mais jovens por meio de nossos projetos de educação teológica.
Nossas estruturas devem usar pedagogias que transgridam as normas vigentes que consolidam hierarquias, exclusão e assimilação, e que impedem as pessoas de crescer na fé. É por essa razão que eu proponho que a pedagogia deve ser transdisciplinar, transgressiva e transformadora.

Sendo transdisciplinar

A abordagem transdisciplinar se baseia na crítica pós-colonial e feminista da hegemonia disciplinar. Essas/es estudiosas/os demonstraram que os silos disciplinares são um mecanismo essencial para sustentar o poder das formas dominantes e heteropatriarcais de produção de conhecimento dentro da academia (nas obras de Spivak).
Assim, a transdisciplinaridade, como termo decolonial, envolve a facilitação de movimentos entre disciplinas dentro de um currículo no qual, além da proficiência em uma disciplina, o objetivo do aprendizado passa a ser a compreensão e a utilização de “teorias, conceitos, habilidades e atitudes que transcendem e se traduzem em especialidades de áreas temáticas”. Ao fazer isso, as/os estudantes conseguem ver as várias verdades que podem existir sobre um determinado tópico, tanto em contextos populares quanto acadêmicos. 
Temos que produzir estruturas para os cinco temas, mas observando que eles estão conectados entre si, e serão usados por pessoas que têm várias identidades e necessidades em todos eles. A transdisciplinaridade nos convida a pensar de forma transversal sobre os temas e a estabelecer vínculos, sem trabalhar em silos.

Sendo transgressiva

A abordagem transgressiva é “um movimento contra e além dos limites dos métodos de ensino e avaliação considerados convencionais.” Hoje em dia, em muitos espaços acadêmicos, o que é considerado convencional são os métodos ocidentais de ensino, de modo que as/os estudantes são levadas/os a acreditar que “a busca pelo “verdadeiro significado” era autenticamente acadêmica, enquanto a leitura por meio da experiência contemporânea vivida de uma pessoa não apenas era não acadêmica, mas totalmente transgressora”. Além disso, nas salas de aula tradicionais, o conteúdo acadêmico é restrito a artigos e livros que são revistos pelos pares e fazem parte de um cânone erudito.” A pedagogia transgressiva, portanto, transpõe intencionalmente essas “convenções” e “tradições”. Dessa forma, estudantes podem aprender por meio de mídias cotidianas, contextuais, reconhecíveis e relacionáveis, como estudos de caso de realidades vividas e narrativas que inevitavelmente produzem conhecimento relevante, crítico e contextual.  Na produção de nossas estruturas para os cinco temas, devemos nos afastar da prescrição de soluções. Confiar que uma estrutura pode ser adaptada, que outras formas são possíveis e que essas formas atenderão às necessidades de um contexto local.

Sendo transformadora

A pedagogia transformadora se baseia na necessidade de “reformular estruturas e práticas universitárias institucionais e epistemológicas injustas e coloniais.” Além das metodologias importadas e empacotadas, “A pessoa é chamada a questionar as abordagens de desenvolvimento que desvalorizam os mundos sociais em que as/os estudantes moram e constroem”. Em outras palavras, ela criar espaço para que as/os estudantes se envolvam criticamente com crenças, atitudes e opiniões (suas próprias e de outras pessoas), posicionando-as/os como coprodutoras/es, em vez de consumidoras/es de conhecimento, e reconhecendo-as/os como agentes de mudança com autoridade. Na preparação de estruturas para esses temas, nosso objetivo é que as pessoas abram oportunidades para quem vai usá-las em seus próprios espaços, para que façam uma autoavaliação, critiquem suas crenças e posições para seu próprio crescimento e o da sociedade. As pessoas têm a chave para a mudança que elas querem ter. 
Essas cinco estruturas darão às pessoas a oportunidade de pensar de forma crítica, imaginar e crescer em sua fé cristã.
Gostou do assunto?
Se você gostou desse tema – Educação Teológica Pós-Colonial – em breve publicaremos um artigo com o mesmo tema, de autoria do nosso reverendo Gustavo Gilson. Aguardem!
Referências
  • Sarojini Nadar, Johnathan Jodamus e Megan Robertson, ‘Transdisciplinary, Transgressive and Transformative: Pedagogical Reflections on Sexual Ethics, Religion, and Gender’, em Critical African Studies, 2022.
  • ‘Esse Quam Videri . . . to Be and Not to Seem’, em Vulnerability and Resilience. Body and Liberating Theologies, Jione Havea (ed.), Lexington Books: Maryland, 2020.
  • Spivak, Gayatri Chakravorty. An Aesthetic Education in the Era of Globalization (Cambridge: Harvard University Press, 2012).
  • Spivak, An Aesthetic Education, 11.
  • Sarojini Nadar, et al ‘Transdisciplinary, Transgressive and Transformative,’15.
  • Davids, N and Yusef Waghid, ‘Higher education as a pedagogical site for citizenship education’, Education, Citizenship and Social Justice 11:1 (2016), 34-43.
  • Sarojini Nadar, et al “Transdisciplinary, Transgressive and Transformative,” 16.
  • Sarojini Nadar, et al “Transdisciplinary, Transgressive and Transformative,” 17.
  • Sarojini Nadar, et al “Transdisciplinary, Transgressive and Transformative,” 21.
  • Cammorota, Julio and Michelle Fine. Revolutionizing Education: Youth Participatory Action Research in Motion. (New York: Routledge, 2018), 2.