“Unidade na luta pela vida na Amazônia”. Entrevista com a bispa Marinez Bassotto

Recentemente, a bispa Marinez Bassotto, da Diocese Anglicana da Amazônia, foi agraciada com uma premiação pra lá de especial, a Cruz de Santo Agostinho. A notícia sobre esta condecoração você pode conferir neste link
Em comunicado oficial, a Comunhão Anglicana informou que a comenda era um reconhecimento pelos serviços da bispa em apoio ao “papel da Comunhão no cuidado da criação e em questões de justiça climática, dando voz aos povos indígenas”.
Para entender um pouco melhor o significado dessa premiação e como isso se encaixa na realidade não apenas da bispa, mas da Diocese Anglicana da Amazônia de maneira muito especial, fomos conversar com ela que, gentilmente, nos repassou informações valiosas.
Confira!
  1. Bispa, como você recebeu a notícia de que seria condecorada com a Cruz de Santo Agostinho? E o que esse reconhecimento significa para a sua caminhada?
Eu recebi a notícia com surpresa e alegria. Fiquei feliz e grata pelo reconhecimento do arcebispo Justin [Welby] ao trabalho, missão e ministério de nossa Igreja na Amazônia.
Em relação à minha caminhada pessoal, eu vejo essa comenda como um incentivo ao meu ministério episcopal e ao trabalho ao qual me propus quando disse sim ao desafio de servir a Deus e à Igreja na Amazônia, mas também entendo essa comenda como um passo a mais na visibilização do episcopado feminino e como o olhar da Comunhão Anglicana para a IEAB, para a Amazônia, e para os povos aos quais servimos.
  1. A razão dessa premiação, de acordo com informações oficiais, foi seu trabalho em áreas como “cuidado da criação e em questões de justiça climática, dando voz aos povos indígenas”. Pode detalhar um pouco mais como se dá esse trabalho junto às comunidades da nossa Amazônia?
Para responder a essa pergunta, tenho de falar um pouco da realidade da Diocese Anglicana da Amazônia. No dia 2 de setembro deste ano de 2022, comemoraremos 110 anos de presença anglicana na Amazônia. Embora a presença anglicana na Amazônia tenha mais de 1 século, a Diocese Anglicana da Amazônia é uma jovem Diocese (a mais jovem da IEAB – tem 15 anos), é também a Diocese com a maior extensão territorial na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. A área geográfica da Diocese equivale a 42,27% do território nacional brasileiro. São 5 estados na região da Amazônia Brasileira (Acre, Amazonas, Amapá, Pará e Roraima). Embora sejamos uma Igreja pequena, somos uma Igreja em expansão missionária, nossa ação está firmada nas marcas da Missão, buscamos caminhar em conjunto com as populações originárias vivendo a 5° marca que nos chama a salvaguardar a criação de Deus e a lutar para salvar a vida humana. E temos uma forte inserção diaconal na área de Justiça Ambiental através:
  • do Curso de Educadores(as) Sociais/Populares na Amazônia; neste ano de 2022, completamos 7 anos de existência do curso, que é um curso de incidência pública que forma lideranças locais gratuitamente através do oferecimento de módulos e oficinas, tendo como intenção a promoção da organização social das pessoas que estão à margem do sistema político e econômico da atual conjuntura amazônica e brasileira;
  • de um projeto chamado Justiça econômica e Identidade Indígena, que apoia mulheres artesãs de várias etnias indígenas;
  • de um Curso pré-vestibular com jovens indígenas no estado do Amazonas;
  • e de ações de advocacy, nos colocando como voz profética – e denunciando paulatinamente toda essa conjuntura de morte. Inclusive com declarações e notas públicas de repúdio.
Com apoio da Aliança Anglicana (AA), em conjunto com as Redes globais Indígena (AIN) e Ambiental (ACEN) da Comunhão Anglicana, elaboramos uma série de webinars e vídeos intitulados Vozes Indígenas Proféticas sobre a Crise Planetária, nos quais refletimos e discutimos sobre a cosmovisão e as concepções dos povos originários a respeito do espaço sagrado e das relações interpessoais e com a terra (nossa mãe e nosso sustento). Foi uma série de 4 webinars e 4 vídeos oferecidos para a África, Aotearoa e Polinésia, Ártico e Amazônia.
Houve ainda a minha participação pessoal em vários momentos de debate, mesas redondas, seminários e webinars em nível nacional e internacional em que, em nome da Diocese Anglicana da Amazônia e em nome da IEAB, na condição de bispa diocesana e membro do GT de Justiça Ambiental, amplamente denunciei a situação vivida hoje no Brasil em relação à flexibilização de normas, desregulações, desrespeito e ataques às instâncias de proteção ambiental e aos povos originários, levantando, amplificando e apoiando as vozes indígenas e das demais populações originárias que clamam pelo direito ao território, ao respeito e, também, ao direito à manutenção de sua cultura.
  1. Mudança climática e aquecimento global são coisas de “ecochatos”, como alguns dizem? E como é a sua percepção, a partir da Amazônia, para um problema que é tão urgente, mas que muitos insistem em negar?
A principal mensagem em relação ao aquecimento global e as mudanças climáticas vem sendo dada pelo movimento das Juventudes pelo Clima (Fridays for Future, em português Sextas-feiras pelo Futuro) e por ativistas, ambientalistas, ONGs e Institutos de Proteção Ambiental em nível nacional e internacional, que incansavelmente alertam para o fato de que, nas próximas décadas, a humanidade enfrentará uma série de calamidades climáticas, algumas das quais irreversíveis, provocadas pelo aquecimento global.
Mas eu creio que nos enganamos se pensarmos que os riscos do aquecimento global e das mudanças climáticas são problemas do futuro. Na verdade, os impactos das mudanças climáticas já são sentidos agora! Já estamos vivemos sob riscos climáticos – basta olharmos à nossa volta e veremos a catástrofe das enchentes e deslizamentos na região serrana do Rio de Janeiro, as consequências das tempestades e inundações em partes do Norte, Nordeste e Sudeste do Brasil, as secas no Sul, e assim por diante.
As mudanças climáticas são causadas pela parcela mais poderosa da humanidade e os impactos destas mudanças são muito mais graves entre populações mais vulneráveis e marginalizadas, tanto urbanas quanto rurais, e aqui não me refiro apenas ao Brasil, mas ao mundo. Segundo dados do Painel Científico para o Clima (IPCC) da ONU “metade da população mundial já vive sob risco climático e nas regiões mais vulneráveis, o número de mortes por secas, enchentes e tempestades foi 15 vezes maior na última década do que nas regiões menos vulneráveis.
As mudanças climáticas causadas pelo aquecimento global, pela degradação ambiental, pela maneira hierárquica e extrativista como nos relacionamos com nosso planeta e entre nós, são problemas de toda a humanidade. A verdade é que toda a humanidade está em risco, mas é também verdade que as parcelas mais empobrecidas e vulneráveis da humanidade são afetadas de forma desigual. Como foi afirmado por Patrícia Pinho, do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), e também por outras lideranças importantes que lutam pela justiça socioambiental, mudanças climáticas “têm cor, raça, gênero, etnia e geografia”.
Então, falando deste lugar geográfico, no Sul do Mundo, que é a Amazônia, é correto afirmar que os impactos das mudanças climáticas são maiores nas vidas das comunidades originárias e periféricas que aqui vivem, e o resultado dessas mudanças está sendo intensificado por um processo de necro-política (política de morte) voltado a esmagar as estruturas de proteção e de cuidado ambiental e os direitos das populações mais vulneráveis, denotando um absoluto descompromisso com a preservação, com o cuidado e com a defesa da vida.
Está em curso um processo de desregulamentação das políticas ambientais, de sucateamento e desmonte das instâncias de proteção ambiental, de enfraquecimento da fiscalização, e das ações socioambientais, causando a devastação da natureza e criando situações de morte e perseguição às lideranças indígenas e demais povos originários (comunidades ribeirinhas e quilombolas).
Precisamos de uma mudança de atitudes – uma mudança na forma como nos alimentamos, nos vestimos e nos locomovemos. Essa necessidade é urgente e deve começar agora. Na minha avaliação, essa mudança deve começar pelo apoio e cuidado para com as mulheres e com os povos originários, pois isso é extremamente importante e estratégico para frenar as mudanças climáticas, visto que essas populações são a chave para uma compreensão mais inter-relacional entre os seres humanos e o meio ambiente, para a preservação e para a recuperação das florestas e da natureza como um todo.
  1. O Serviço Anglicano de Diaconia e Desenvolvimento (SADD) se envolve de que forma?
O SADD tem apoiado os projetos realizados na Diocese da Amazônia através do Fundo de Pequenos Projetos, desde o ano de 2018, com aportes financeiros para ações na AMARN (Associação de Mulheres Artesãs Indígenas do Alto Rio Negro) que incluem projetos de geração de renda, fabricação de artesanatos e encontros de conscientização, prevenção e enfrentamento à violência baseada em gênero.
Também com ações emergenciais para o enfrentamento à Covid-19 nos anos de 2020 e 2021, através de recursos para a entrega de cestas básicas e materiais de higiene para os povos indígenas que foram afetados de maneira desigual em nossa região, tornando-se ainda mais vulneráveis.
O SADD, sendo o braço das ações diaconais da IEAB, é sempre um suporte importante para o nosso trabalho.
  1. Além dessas frentes de trabalho, você também atua na questão do ecumenismo e diálogo inter-religioso. Qual é a importância desse tipo de abordagem aí na região da Diocese Anglicana da Amazônia?
Sim, eu tenho longa caminhada nesta área.
E por isso mesmo tenho consciência de que as Igrejas cristãs, ecumenicamente, e o movimento de diálogo inter-religioso podem e devem trabalhar em parceria aos povos indígenas na defesa do meio ambiente. E de fato estão fazendo isso na Amazônia. A região amazônica é uma região muito extensa, composta por diversos estados, e a caminhada ecumênica está em diferentes estágios em cada um dos estados, mas são grupos atuantes na luta por direitos, por justiça e por equidade, e na defesa e proteção socioambiental. Posso afirmar isso porque tenho acompanhado de perto essa caminhada nos estados do Pará e do Amazonas.
Creio que é importante destacar que as aspirações mais antigas pela unidade da Igreja de Cristo nasceram do desejo de construção de um mundo solidário e fraterno, de um mundo com justiça e com plenitude de vida, não para os cristãos e cristãs somente, mas para toda a humanidade. E surgiram frente a grandes crises e rupturas na história da humanidade. Isso não é diferente neste tempo em que vivemos.
Nossos movimentos ecumênico e de diálogo inter-religioso na Amazônia e no Brasil sempre nos desafiam a trabalhar a temática do diálogo, da fraternidade e do respeito à diversidade, especialmente a diversidade religiosa e cultural, e tudo isso tem aprofundado e fortalecido os nossos laços de unidade na luta pela vida na Amazônia.