Alguns pensamentos sobre a Quaresma. Por SumioTakatsu

Iniciamos, nesta semana, a Quaresma, período que nos leva à reflexão sobre muitos aspectos de nossa vida cristã. O momento é propício para que façamos as perguntas certas a nós mesmos:
  • Que tipo de vida estamos levando?
  • Como tem sido nosso compromisso com as pessoas que sofrem?
  • Estamos, verdadeiramente, sendo espelhos de Cristo?
  • Até que ponto estamos comprometidas em defender a causa do “órfão e da viúva”?
  •  Lutamos contra as injustiças, ou apenas fazemos “tweets” sobre isso?
Além de ser um período de reflexão, Quaresma também é, nas palavras do saudoso bispo Sumio Takatsu “o período de aprofundamento da liberdade em Cristo”. Essa liberdade em Cristo, necessariamente, nos leva a atitudes de transformação, amparo, acolhida e cuidado – longe dos formalismos e dos legalismos que as “hierarquias” insistem em nos recordar.
A seguir, compartilhamos alguns pensamentos sobre a Quaresma que foram publicados originalmente no dia 23/03/2003, no boletim da Paróquia de São João (da IEAB). O texto é de autoria do então bispo Sumio Takatsu.

Confira:

A Quaresma está bem perto de nós. Com isso, entraremos num outro ritmo e usaremos a cor roxa, sinalizando o período de preparação para a Páscoa, a celebração da ressurreição do Senhor. É importante observar que, nos quarenta dias, não se contam os domingos. Por isso, dizemos domingos na quaresma e não da Quaresma. Domingo é sempre a celebração semanal da gloriosa ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem somos um povo cristão. Por isso não pode ser considerado parte da Quaresma.
Também é importante lembrarmo-nos de que as quadras do Ano Cristão surgiram e evoluíram em função do domingo e da Páscoa. A Quaresma surgiu por volta do século IV e, inicialmente, teve a função de preparar os candidatos ao Batismo na Vigília Pascal. Associou-se a isso o período de penitência dos que, gravemente, violaram os compromissos batismais. A penitência se estendeu, gradualmente, a todos. Do mesmo modo, o jejum que era de dois ou três dias antes da Páscoa se estendeu ao período de toda Quaresma. Parece-nos que houve uma inclinação para o excesso de fervor ou zelo pela prática de disciplina. E sempre houve e haverá exagero que desvie o foco central para as questões periféricas. O importante é a ideia e a prática de doar alguma parte de si mesmo a outrem, para aprofundar o nosso entendimento e prática do Evangelho. Essa “alguma parte” não pode ser uniforme. Para quem tem caloria demais é bom que abandone uma boa parte, em favor de outrem. Quem está subnutrido pode ter outra expressão de amor em favor de outrem. O importante é sempre lembrarmo-nos de que a melhor expressão da religiosidade, do sacrifício e oferenda está nas palavras do profeta Miquéias: ele mostrou a você, ó gente, o que é bom e o que o Senhor exige, pratique a justiça, ame a misericórdia e ande humildemente com o seu Deus (6.8). A prescrição de comida é uma coisa que não entra na cabeça de quem lê o Novo Testamento. Nem por isso deixa de ter respeito para quem existe prescrição de comida ou de dia.
Quaresma é um período de aprofundamento da liberdade cristã, como entende o apóstolo Paulo no capítulo 14 da Epístola aos Romanos com a exemplificação da comida e do dia sagrado. O que importa é que vivemos para o Senhor e ao próximo. O jejum deve ser algo voluntário. Isso me faz lembrar da reunião preparatória da Conferência de Lambeth de 1988. Foi discutida a proposta do arcebispo Desmond Tutu no sentido de ter um ou [dois] dias de jejum durante a Conferência. Colin Craston, mais tarde coordenador do Conselho Consultivo Anglicano, fez interferência no sentido de os diabéticos como ele teria sua alimentação com regularidade e dei o meu apoio. Por isso, um refeitório ficou aberto para quem não quer e não pode ter jejum. A voluntariedade opcional é importante naquelas coisas que não são essenciais para a salvação.
É costume não dizer a aleluia durante a Quaresma para dar maior expressão de alegria na Páscoa. E me esforcei muito para que a omitisse. Não adiantou nada. E agora estou mudando de ideia partindo do fato de que a celebração do domingo é sempre pascal. Além disso, o termo aleluia significa “louvemos ao Senhor” e vem dos Salmos 104 a 150 e de Apocalipse 19.1. É expressão de louvor e sempre louvamos ao Senhor e, mormente, nos domingos. Pode-se abster do Gloria in excelsis como se prevê.
Também é costume não ter flores na Igreja durante a Quaresma. O racional de retirar as flores é alguma coisa assim. Retiram-se as flores para aguardar a experiência de explosão da exuberância das flores. Se isso for o caso, porque não colocar aquelas flores miudinhas que parecem mortas, mas sempre vivas, em sinal de que aguardam o momento do florescimento espantoso na Páscoa? Na verdade, os salmos exortam todas as criaturas, (principalmente, 148) a render louvores a Deus. Na oração B, dizemos, com eles… dando expressão a toda a criatura debaixo céu, nós te aclamamos… Hoje as Igrejas estão recuperando o ensino bíblico sobre o meio ambiente. No que se refere à presença das flores na Igreja, é possível dizer que há ritmo das quadras e das estações do ano. Mas é verdade, também, que pode dar expressão ao tempo de espera com flores acima indicadas, por exemplo. As questões de ornamentação, de vestes e de cores têm muito a ver com a cultura donde esses costumes se desenvolveram e a cultura evolui e tem sua relação estreita com o clima.
Tudo isso não deve ser uniforme. Parece-nos que algumas paróquias nos Estados Unidos onde se experimenta a coexistência de gente originária de diferentes culturas têm uns três horários diferentes de culto aos domingos. Num horário, a liturgia é na linguagem tradicional do inglês, noutro, com a linguagem de hoje com hinos de tipo diferente, no terceiro, uma outra variação, tendo todos eles em comum o uso do Livro de Oração Comum, os mesmos próprios do dia e o mesmo sermão. A inclusividade que os anglicanos têm por ideal deve facilitar diferentes experiências numa só comunhão e comunidade. Para tanto, é imprescindível que nos aprofundemos no essencial na caminhada para a Páscoa, sem esperar que os outros sejam iguais a nós, sem ter que sentir vergonha quando não parecemos com a expectativa de outros. A Quaresma é o período de aprofundamento da liberdade em Cristo.
Bispo SumioTakatsu (1927 – 2004)