Quem tem sido “próximo” das mulheres vítimas de violência?

Por Odja Barros*
As estradas da violência contra as mulheres no Brasil revelam dados assustadores: uma mulher é morta a cada sete horas por ser mulher. Uma mulher sofre violência doméstica a cada dois minutos. Uma menina de até 13 anos é estuprada a cada 15 minutos. O Brasil bateu seu próprio recorde de assassinatos contra mulheres trans e travestis em 2020. No ranking mundial de feminicídio, o Brasil ocupa o 5º lugar. Os registros de violência sexual vêm crescendo anualmente. E o Brasil é lanterna no ranking de paridade política de gênero na América Latina. É por esta estrada de violência que as mulheres no Brasil têm caminhado.
Quem é responsável pela pavimentação dessa estrada da violência contra as mulheres? A cultura patriarcal e a violência das mulheres tem sido uma demanda totalmente silenciada pela maioria das igrejas. O uso da Bíblia na maioria das igrejas no Brasil tem reforçado uma cultura de dominação e subjugação justificada por uma leitura patriarcal que diminui o valor das mulheres em relação aos homens, legitimando e perpetuando, assim, relações de opressão e violência. 
O peso do patriarcado religioso tem sido em grande parte responsável por essa cultura de violência contra as mulheres. Ao longo da história, a visão patriarcal cristã teve papel importante na construção e consolidação de sistemas de opressão e violência de gênero. O corpo das mulheres tem sido um campo de especial de ataque do patriarcado religioso. Como pastora, atuando numa comunidade batista, tenho lidado todos os dias com os dilemas resultantes dos discursos religiosos patriarcais na vida e no corpo das mulheres. Esses corpos gritam e clamam! É na escuta desse grito que proponho a releitura de Lucas 10:25-47 a partir dos corpos violentados das mulheres.
A parábola conhecida como parábola do bom samaritano fala de uma estrada de vinte e sete quilômetros que desce pelo deserto, de Jerusalém para Jericó e tem sido perigosa durante toda sua história. Perigosa para quem?  A estrada entre as duas cidades era um vale rochoso com muitas curvas e grutas na beira da estrada., e por isso, a tinha fama de ser perigosa para viajantes porque abrigava muitos assaltantes violentos. Apesar disso, a parábola narra que sacerdotes e levitas, passam sem ser molestados pela Estrada. Seria graças ao status religioso que possuíam? A parábola não revela. O fato é que o mesmo não aconteceu com um pobre viajante que passando pela mesma Estrada foi assaltado, espancado, despido e deixado quase morto. E, se fosse uma mulher passando na mesma estrada? Convido a que façamos um exercício de imaginação: 
“Descia de Jerusalém rumo a Jericó, UMA MULHER, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram deixando-a quase morta. Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu a mulher, passou pelo outro lado. E assim também um levita; quando chegou ao lugar e viu a mulher, passou pelo outro lado. Mas um samaritano, estando de viagem, chegou aonde se encontrava a mulher vítima da violência  e, quando a viu, teve compaixão dela. 
Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-a sobre o seu próprio animal, levou-a para uma hospedaria e cuidou dela. No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e disse-lhe: ‘Cuide dela. Quando voltar lhe pagarei todas as despesas que você tiver’. “Qual destas três pessoas você acha que foi próxima da Mulher vítima da violência? “Aquele que praticou a misericórdia com ela”, respondeu o perito na lei. Jesus lhe disse: “Vá e faça o mesmo”.

Quem você acha que tem sido “próximo” das mulheres vítimas de violência?

O dia 25 de novembro é o Dia Internacional de Combate à Violência contra as Mulheres. Em 1999, a Assembleia Geral da ONU inseriu o dia 25 de novembro no calendário oficial, dando início a Campanha 16 dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, visando mobilizar discussões e ações que enfrentem essa violência estrutural que se tornou uma verdadeira pandemia mundial. O dia 25 de novembro faz memória das irmãs Maria Teresa e Patricia Mirabal, da República Dominicana, mulheres engajadas na luta contra ditadura (1930-1961) que em 25 de novembro de 196 foram torturadas, estupradas e assassinadas. O crime e a violência contra os imãs Mirabal indignaram o País e disparou uma série de protestos, acelerou a queda da Ditadura. No Brasil, a campanha 16 dias de ativismo ganhou mais cinco dias, com início em 20 de novembro, dia da Consciência Negra, para lembrar que as mulheres negras sofrem duplamente, a violência de gênero e a violência racista. 
Nestes 21 dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, a convocação é para que as igrejas cristãs possam ir além de “ações samaritanas”. É muito importante a criação de rede de apoio e cuidado das mulheres vítimas da violência pelas igrejas, no entanto, tais ações não se mostram suficientes para enfrentar e erradicar o mal estrutural da violência contra as mulheres. Para além das “ações samaritanas” que recolhe e cuida das mulheres vítimas da violência, é urgente, um ativismo que denuncie e elimine as “estradas da violência” que passam pela família, igrejas, trabalho, todos os espaços onde as mulheres vivem e transitam. É urgente um ativismo samaritano que denuncie “sacerdotes” e “levitas” que passam de largo e silenciam frente aos corpos assaltados, violentados das mulheres. Eles são corresponsáveis, pois o silêncio pavimenta as “estradas da violência” por onde as mulheres têm que passar.
Os corpos das mulheres, meninas que transitam todos os dias pelas “estradas da violência” não esperam por uma ação samaritana que venha recolher e cuidar das feridas de seus corpos violados. Esperam por um ativismo samaritano que pare de construir e pavimentar com seus discursos as “estradas da violência”. Um ativismo que tenha coragem de denunciar todos os “assaltantes” que se abrigam e se escondem nesta “estrada”. Um ativismo samaritano que lute pela eliminação de todas as “estradas da violência” por onde passam as mulheres e meninas. Um ativismo samaritano que construa novas estradas sem violência onde possamos viver, existir e caminhar livres e sem medo!
___
*Odja Barros é teóloga feminista, doutora pelas Faculdades EST e, atualmente, serve como pastora e educadora na Igreja Batista do Pinheiro.
Imagem: Pixabay